O que existe de elementar na tal cultura judaico-cristã?
Apesar de judaísmo e cristianismo terem muitas diferenças e até incompatibilidades, é possível encontrar um ponto fundamental a ligar essas duas grandes religiões. Essa similaridade pode ser muito bem compreendida a partir da análise de um evento bem curioso relatado pelas tradições judaicas datado do início do século II dC: o incidente do forno de Akhnai, descrito Talmud (Bava Metzia 59b).
Naquele incide, as autoridades rabínicas discutiam a respeito da halakha (lei judaica). Um rabino (Eliezer bem Hurcanus) defendia uma certa aplicação da lei a respeito da pureza ritual de um forno (daí o nome forno de Akhanai) enquanto os outros rabinos discordavam. Como os argumentos do rabino Eliezer não estavam sendo suficientes para convencer os seus pares, ele teria recorrido a sinais miraculosos, dentre eles, um riacho que teria fluído para trás e uma parede que teria começado a cair depois das palavras dele. Contudo, mesmo aqueles sinais não foram suficientes para o convencimento dos outros rabinos. Por fim, o rabino Eliezer teria apelado aos céus, momento no qual a voz divina teria sido ouvida dos céus dando razão ao rabino Eliezer.
Naturalmente, imagina-se que a questão teria sido imediatamente resolvida, pois, quem mais além de Deus para dar a última palavra a respeito de algo? Quem poderia ousar discordar de uma sentença divina direta? Quem teria a petulância de discordar do Altíssimo, O Criador dos céus e da terra? Porém, surpreendentemente, o desfecho da história foi no sentido totalmente oposto.
Citando o texto de Êxodo 23:2, o Rabino Yirmeya teria dito: “Já que a Torá já foi dada no Monte Sinai, não consideramos uma Voz Divina”. Isso mesmo, os opositores do rabino Eliezer insurgiram-se contra uma sentença divina. E o desfecho piora ainda mais a situação, pois relata que Deus, louvado seja, teria dito na sequência: “Meus filhos triunfaram sobre Mim; Meus filhos triunfaram sobre Mim.”
Trata-se, portanto, da doutrina de substituição das ordens divinas pelo consenso da maioria. Trata-se da usurpação da prerrogativa divina de determinar o que é lícito e o que é ilícito. Trata-se da substituição dos critérios divinos pelos critérios humanos.
Essa doutrina de usurpação dos critérios divinos pelos critérios humanos também é fundamento do cristianismo, como está escrito no Evangelho de Mateus 16:19, que Jesus (A.S.) teria dado as chaves dos céus ao discípulo Pedro que simbolizava, no texto, a Igreja, de modo que tudo o que ele (Pedro=Igreja) ligasse na terra seria ligado nos céus e que tudo o que ele desligasse na terra seria desligado nos céus. Texto semelhante encontra-se em Mateus 18:18.
Ou seja, tanto a doutrina judaica como a cristã partem do sequestro da autoridade divina em favor do homem. E é essa ideia geral que fundamenta a concepção de democracia, pois esta parte do pressuposto de que são as pessoas aqui na terra que têm a prerrogativa de decidir qual caminho seguir, de estabelecer o lícito e o ilícito com base no consenso ou na decisão majoritária de um grupo. Note-se que não se trata de um grupo que esteja a empregar esforços no sentido de descobrir qual seria a melhor interpretação para uma norma divinamente revelada, pois não é a vontade divina que se deseja descobrir. O paradigma é ter a prerrogativa de decisão independente do critério divino, é dizer, na linha do Rabino Yirmeya “não consideramos uma Voz Divina”.
Para o islamismo, essa postura é inadmissível e considerada, inclusive, idolatria, como está escrito:
أَمْ لَهُمْ شُرَكَـٰٓؤُا۟ شَرَعُوا۟ لَهُم مِّنَ ٱلدِّينِ مَا لَمْ يَأْذَنۢ بِهِ ٱللَّهُ ۚ وَلَوْلَا كَلِمَةُ ٱلْفَصْلِ لَقُضِىَ بَيْنَهُمْ ۗ وَإِنَّ ٱلظَّـٰلِمِينَ لَهُمْ عَذَابٌ أَلِيمٌۭ
Ou têm eles parceiros que legislaram, para eles, o que da religião Allah não permitiu? E, não fora a Palavra da decisão haver-se-ia arbitrado entre eles. E, por certo, os injustos terão doloroso castigo. (Alcorão 42:21)
ٱتَّخَذُوٓا۟ أَحْبَارَهُمْ وَرُهْبَـٰنَهُمْ أَرْبَابًۭا مِّن دُونِ ٱللَّهِ وَٱلْمَسِيحَ ٱبْنَ مَرْيَمَ وَمَآ أُمِرُوٓا۟ إِلَّا لِيَعْبُدُوٓا۟ إِلَـٰهًۭا وَٰحِدًۭا ۖ لَّآ إِلَـٰهَ إِلَّا هُوَ ۚ سُبْحَـٰنَهُۥ عَمَّا يُشْرِكُونَ
Tomam seus rabinos e seus monges por senhores, além de Allah e, assim também, ao Messias, filho de Maria. E não se lhes ordenou senão adorarem um Deus Único. Não existe deus senão Ele. Glorificado seja Ele, acima do que idolatram. (Alcorão 9:31)
Portanto, a cultura judaico-cristã tem como elementar o estabelecimento da vontade humana proveniente do consenso da liderança ou da posição majoritária desta em substituição à vontade divina, o que foi rechaçado pela derradeira revelação divina (Islam) como sendo um grande erro, um grave pecado e até uma forma de idolatria.
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