A Ilusão Democrática: Da Assembleia Grega à Manipulação Moderna
Em nome de Deus, O Clemente, O Misericordioso.
Democracia é uma daquelas palavras vazias de significado que, por isso mesmo, pode e é usada amplamente para justificar qualquer coisa que seja. Diversas são as vertentes políticas, entre muitas das quais há veemente oposição, mas todas se dizem igualmente democráticas.
Etimologicamente, democracia pode ser conceituada como o governo do povo, pelo povo e para o povo. Na Grécia antiga do século V a.C., foi concebida como um sistema de governo cujo caráter essencial era o povo como autor das leis e que estas deveriam ter por objetivo o bem comum e não o particular, podendo ser os responsáveis por aplicá-las (aos quais se chama hoje de Poder Executivo) eleitos ou escolhidos por sorteio1. Já naqueles tempos, embora fosse o povo diretamente que estivesse reunido em assembleia para legislar, a democracia recebeu severas críticas:
Tanto Platão como Aristóteles referem-se à democracia com críticas, confrontando, com os luminosos tempos anteriores à sua implementação, o confrangedor espetáculo de decadência a que as cidades gregas haviam chegado, entregando-se à demagogia e à corrupção.2
A esse respeito, diz Deus, O Altíssimo, no Alcorão Sagrado:
وَإِن تُطِعْ أَكْثَرَ مَن فِى ٱلْأَرْضِ يُضِلُّوكَ عَن سَبِيلِ ٱللَّهِۚ إِن يَتَّبِعُونَ إِلَّا ٱلظَّنَّ وَإِنْ هُمْ إِلَّا يَخْرُصُونَ
Se obedeceres à maioria dos seres da terra, eles desviar-te-ão da senda de Deus, porque não professam mais do que a conjectura e não fazem mais do que inventar mentiras.3
Portanto, a demagogia e a corrupção não são acidentes ou distorções na aplicação da democracia, mas o desdobramento natural dela. Tanto que, vinte e seis séculos se passaram e temos visto exatamente o mesmo resultado hoje.
Nos tempos modernos, o resgate da palavra democracia se deu, declaradamente, em oposição à opressão e à desigualdade formal inerentes à organização social europeia vigente até o início do século XIX, qual seja, a sociedade dividida em três estamentos denominados nobreza, clero e povo (ou Terceiro Estado). Contudo, o que se percebe foi que uma pequena, porém poderosa, parcela do Terceiro Estado chamada de burguesia, na qual se incluíam comerciantes bem-sucedidos e banqueiros, buscou obter a adesão do restante do povo para substituir a organização social anterior por outra baseada no critério econômico ou de classes sociais.
Assim, na modernidade, a ideia de democracia foi concebida, no âmbito teórico, não como um fim em si mesma, mas sim como o meio mais eficaz para se alcançar a liberdade e a igualdade em comunidade. Contudo, o resultado foi bem diferente do discurso. Se, na sociedade anterior havia concentração de privilégios e poder, na sociedade dita democrática chegou-se a patamares absurdos dessa concentração.
Conforme o estudo, a distribuição da riqueza mostra concentração de metade da fortuna europeia nas mãos de 10% das famílias. Essa concentração é maior na Áustria e na Alemanha, com 40% e 35% da fortuna total nas mãos dos 1% mais ricos. Já Reino Unido, Grécia e Holanda tem a menor concentração, com 15% ou menos da riqueza detida pela fatia de 1% mais ricos.4
A verdade é que nunca houve qualquer arranjo social que fosse democrático, seja no aspecto da governança seja no que se refere à autoria da lei. Isso porque é impossível qualquer coletividade governar a si mesma. Ainda que se tenha apenas duas pessoas, acaba havendo a necessidade de uma delas tomar a liderança, quanto mais quando se trata de milhares e de centenas de milhares de pessoas, razão pela qual todo o governo sempre foi de uma elite e nunca do povo. Além disso, não há como a população, de forma geral, se dedicar à atividade legislativa, porque a maioria das pessoas precisa estar empregada na atividade produtiva ou resolvendo questões pessoais.
Não bastasse a democracia ser impossível, os próprios ideais de liberdade e de igualdade que se pretende promover por intermédio dela não se sustentam.
A liberdade, sem dúvida, é um valor humano legítimo e importante, mas não pode ser tido como o valor mais importante. Ela deve ser exercida dentro de uma estrutura hierárquica de valores na qual a obediência a Deus, a preservação da família, a ordem comunitária, o respeito ao próximo, a dignidade humana, a honra, a lealdade, entre muitos outros, devem prevalecer.
Ora, a liberdade plena é incompatível mesmo com a ideia de governo formal, pois este pressupõe controle, uma ordem estabelecida sobre determinadas pessoas (governadas) as quais não são livres para escolher desobedecer. Para resolver esse empasse, a partir da descrença em Deus e em Sua revelação, atribuiu-se um status de divindade à natureza, da qual viriam leis perfeitas e objetivas, sem vieses (ou desvios) ideológicos, as quais deveriam reger a sociedade. Portanto, segundo essa perspectiva, cada um deveria ser deixado livre para agir de acordo com os seus próprios interesses. Dessa forma, seria a própria natureza a reger a sociedade e a garantir, em última análise, a mais perfeita harmonia.
É claro que esse cenário apenas interessa àqueles que já estejam em uma situação de poder na comunidade e é apto a instaurar, não uma harmonia perfeita, mas uma completa barbárie.
Além dos problemas na esfera pública, a ideia de liberdade plena também é perigosa no âmbito privado, pois contrária às virtudes do esforço, da responsabilidade, da lealdade etc. Como esperar de alguém que priorize a liberdade individual que abdique o lazer e a distração em favor do esforço no desenvolvimento de capacidades pessoais para contribuir junto à família e à sociedade? ou que deixe de lado a mentira e o engano para arcar com as responsabilidades dos próprios atos? ou, por fim, que renuncie a falsidade em favor da lealdade?
A liberdade plena é conflitante até mesmo com o segundo ideal da democracia, a igualdade, pois, a liberdade sem critérios permite que alguns poucos homens possam criar condições para subjugar e oprimir os demais, acentuando, assim, as desigualdades. Pensemos, por exemplo, desde uma situação simples como o roubo, na qual o ladrão exerce a liberdade individual para subtrair, pela força, coisa alheia móvel, até situações mais complexas nas quais pequenos grupos se utilizam da força, da chantagem, do engano etc. para subjugar os outros.
O ideal de igualdade também deve ser visto com ressalvas, pois, não há como negar que as pessoas são diferentes, especialmente no que diz respeito às virtudes, aos esforços, aos interesses, ao temor a Deus etc. Portanto, alguma desigualdade proveniente desses critérios legítimos é totalmente razoável. Há também a diferença entre sexos (masculino e feminino), com uma série de desdobramentos psicobiológicos e desdobramentos nos papéis sociais e familiares. Forçar uma igualdade material nesses aspectos equivale anular por completo a liberdade pessoal, instaurar a injustiça e ir contra a natureza das coisas.
A igualdade que deve existir é de todos diante da lei, sem discriminações com base em critérios ilegítimos. Em certa medida, essa igualdade formal é inerente a todo o ordenamento jurídico, pois toda a lei é para ser aplicada a todos os casos semelhantes, dada a sua generalidade e abstratividade, mas pode prever alguma aplicação diferente a partir de certas particularidades do autor do fato, como a condição de miserabilidade em relação ao furto famélico, por exemplo.
A respeito a igualdade, diz o Alcorão Sagrado:
يَٰٓأَيُّهَا ٱلنَّاسُ إِنَّا خَلَقْنَٰكُم مِّن ذَكَرٍ وَأُنثَىٰ وَجَعَلْنَٰكُمْ شُعُوبًا وَقَبَآئِلَ لِتَعَارَفُوٓا۟ۚ إِنَّ أَكْرَمَكُمْ عِندَ ٱللَّهِ أَتْقَىٰكُمْۚ إِنَّ ٱللَّهَ عَلِيمٌ خَبِيرٌ
Ó humanos, em verdade, Nós vos criamos de macho e fêmea e vos dividimos em povos e tribos, para reconhecerdes uns aos outros. Sabei que o mais honrado, dentre vós, ante Deus, é o mais temente. Sabei que Deus é Sapientíssimo e está bem inteirado.5
Sendo assim, as palavras de Deus estão, como sempre, se mostrando verdadeiras, pois o recurso ao ideal de democracia (seguir a vontade da maioria) tem acarretado injustiça e mentira, tratando-se, na verdade, de um instrumento de manipulação do povo para dificultar e até mesmo inviabilizar o controle e a limitação do poder político e econômico além de gerar um grande efeito anestésico, pois, se algo está ruim, a culpa é do próprio povo, pois é ele que estaria no poder.
Ainda que os governos democráticos se submetam ao referendo do voto popular, à responsabilização legal e ao sistema de freios e contrapesos6, a grande questão é: com base em que critérios?
De pouco vale o escrutínio popular se a experiência tem mostrado ser o povo muito suscetível de corrupção pelos demagogos. E mais, como esperar que cada um vote priorizando a justiça e o bem comum, às vezes, até em detrimento dos seus próprios interesses imediatos? É mais de se esperar o contrário: que cada um vote visando os próprios interesses e os interesses de um seguimento específico ao qual faça parte.
De menos ainda vale a responsabilização do Estado e dos governantes diante da lei se é o próprio Estado (e, portanto, os governantes) que institui a lei, que investiga, que julga e que aplica a pena. Assim, via de regra, há de ocorrer um “acordo de cavalheiros” entre os “donos do poder”, em prol de uma proteção mútua, já desde a elaboração da lei, o que torna o sistema de freios e contrapesos mais uma fachada que uma realidade. Isso, obviamente, não impede de o sistema, eventualmente, se livrar de um ou de outro para continuar existindo.
Isso nos deixa claro que a democracia é impossível e gera efeitos danosos à sociedade já com a mera tentativa de implementação. Também os valores de liberdade e de igualdade por ela priorizados, além de serem contraditórios entre si, quando alçados à preeminência na escala de valores, produzem diversos problemas tanto na esfera pública como no âmbito privado.
Portanto, se é a tirania, a opressão e a discriminação injusta que queremos evitar; se é contra a corrupção, a mentira e a manipulação que queremos lutar; se é a limitação do poder do Estado e dos poderosos, a dignidade das pessoas e a harmonia social (tanto quanto possível) que queremos promover, então devemos buscar um ordenamento jurídico estável e superior às paixões humanas, provenientes de Deus e consubstanciado na Shariah islâmica; devemos conferir legitimidade ao governo a partir critérios superiores de moralidade e de justiça, que é a implementação dos Mandamentos divinos e não o palpite de uma maioria eventual. Sendo assim, o caminho efetivo para dignificar um povo não é fomentar nele a persecução das próprias paixões, o individualismo e a inveja, mas sim o conhecimento da Lei divina e o temor a Deus.
لَقَدْ مَنَّ ٱللَّهُ عَلَى ٱلْمُؤْمِنِينَ إِذْ بَعَثَ فِيهِمْ رَسُولًا مِّنْ أَنفُسِهِمْ يَتْلُوا۟ عَلَيْهِمْ ءَايَٰتِهِۦ وَيُزَكِّيهِمْ وَيُعَلِّمُهُمُ ٱلْكِتَٰبَ وَٱلْحِكْمَةَ وَإِن كَانُوا۟ مِن قَبْلُ لَفِى ضَلَٰلٍ مُّبِينٍ
Com efeito, Allah fez mercê aos crentes, quando lhes enviou um Mensageiro vindo deles, o qual recita Seus versículos para eles, e os dignifica e lhes ensina o Livro e a Sabedoria. E por certo, antes, estavam em evidente descaminho.7
Não existe divindade além de Deus e Muhammad é o Seu profeta.
Escrito por André Nascimento
- Enciclopédia Saraiva do Direito / coordenação do prof. R. Limongi França – São Paulo: Saraiva, 1997, V.23. ↩︎
- Ibidem ↩︎
- Al-Quran 6:116 – Tradução Samir El Hayek ↩︎
- https://valor.globo.com/financas/noticia/2014/10/03/riqueza-na-europa-supera-patamar-anterior-a-crise-diz-estudo.ghtml ↩︎
- Al-Quran 49:13 – Tradução Samir El Hayek ↩︎
- O sistema de Freios e Contrapesos é aquele no qual o poder político está dividido em diferentes setores, relativamente independentes entre si, quais sejam o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário. Cada um deles exercendo, tipicamente, parcelas específicas do poder político (administrar, legislar e julgar, respectivamente) e fiscalizando e limitando o outro. ↩︎
- Al-Quran 3:164 – Tradução Samir El Hayek ↩︎
Share this content:
1 comentário